quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O Fenômeno Moderno da Deslegalização
ELYESLEY SILVA DO NASCIMENTO é professor, advogado, servidor da Câmara dos Deputados e autor de livros.
Sabidamente a função legislativa, numa perspectiva material, denota a produção de normas jurídicas com caráter geral e abstrato a fim de disciplinar a conduta dos indivíduos e do próprio Estado.

Há um cuidado todo especial implementado pelo constituinte no texto da Lei Maior no tocante ao exercício da função legislativa. A título de exemplo pode-se citar o art. 22, que dispõe acerca das competências legislativas privativas da União o art. 24, que consigna as hipóteses de competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal; e os arts. 44 a 69, que versam especificamente sobre a organização e o funcionamento do Poder Legislativo federal.

Nesse contexto surge a importância de se compreender o princípio da reserva legal, verificável nas hipóteses em que a Constituição Federal exige lei formal para o seu melhor detalhamento, não aceitando atos outros (decretos, resoluções ou portarias) que não a própria lei. Ilustrativamente, cite-se o disposto no art. 37, inciso VII: "o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica". O preceito acentua com veemência a necessidade de produção de lei específica para tratar acerca do direito de greve no serviço público. Caso o tema seja disciplinado exclusivamente por um decreto executivo, resolução ou portaria haverá frontal violação ao dito princípio da reserva legal.

Em que pese o reforço constitucional em torno do livre e reservado exercício da função legislativa sobre os mais diversos temas, há que se destacar que em muitos momentos a elaboração legislativa esbarra na dificuldade de se tecer detalhamentos necessários à plena regulamentação de determinados assuntos, sobretudo os tópicos técnicos. É dizer: o legislador, mandatário responsável por intervir normativamente nas mais diversas áreas da sociedade, a partir de outorga de poderes constitucionais pelo povo, fica inevitavelmente impedido de estabelecer os necessários pormenores dos temas que lhe são levados à consideração.

Ora, como pode um parlamentar dispor, por si só, de subsídios técnicos para legislar satisfatoriamente sobre vigilância sanitária, telecomunicações, sistema financeiro, energia elétrica, transportes, defesa econômica, aviação civil, entre outros? Porventura, não seria mais adequado que os detalhamentos técnicos sobre tais assuntos fossem fixados pelos órgãos e entidades da Administração Pública especializados no trato dessas matérias?

Tendo em conta esse cenário de impossibilidade material de o legislador dispor sobre assuntos técnicos com a mesma propriedade e destreza com que faria um órgão/entidade especializado é que surge o moderno fenômeno da deslegalização. Por essa tendência, o Poder Legislativo estabeleceria apenas os aspectos básicos acerca de determinados assuntos, deixando à Administração Pública ampla margem de normatização na elaboração de atos normativos infralegais (decretos, resoluções, instruções normativas, portarias etc.).

Trata-se da desmonopolização das fontes normativas, processo que o Poder Legislativo cede espaço aos demais poderes na feitura das normas. Bem preconiza o emérito Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2008, p. 117) que "tudo concorre para que, pouco a pouco, substitua-se um monopólio legislativo ineficiente por um sistema de comandos normativos descentralizado e polivalente, remanescendo, todavia, com as casas legislativas nacionais, apenas o monopólio da política legislativa, que vem a ser a competência para firmar princípios e baixar as normas gerais, a serem observadas pelas demais fontes intraestatais".

Com isso, fica o legislador centrado aos aspectos estruturais acerca de determinadas matérias, conferindo legitimidade democrática às diretrizes estabelecidas, ao passo que caberia ao administrador público, que detém competência técnica-operacional especializada, fixar os detalhamentos por meio de atos normativos inferiores à lei.

Além da vantagem de maximização qualitativa da norma, por ser produzida detalhadamente por quem possua competência técnica para tanto, há outra vantagem na deslegalização: a atualidade. Como as ciências técnicas estão em constante evolução, indubitavelmente o processo de normatização da Administração Pública, por meio de decretos, portarias, resoluções, instruções normativas, o que é mais ágil, favoreceria a permanente atualização das normas, evitando sua inefetividade social. ¹Tal procedimento seria muito mais dificultoso caso a matéria estivesse inteiramente regulada em lei, que teria de passar por todo o rigoroso processo legislativo constitucional (arts. 49 a 59, CF) para ser alterada.

Como fruto da deslegalização, temos a intensa produção legislativa das agências reguladoras e de outros órgãos ou entidades da Administração Pública: resoluções da Anvisa, Anatel, Aneel, ANTT, Anac, instruções normativas do Cade, do Banco Central. Enfim, praticamente todos os órgãos e entidades da Administração detêm poder normativo.

Um ponto de sobremodo importância é relativo aos limites impostos a esses atos normativos infralegais da Administração Pública a fim de que não invadam o campo de atuação reservado constitucionalmente à lei formal, ferindo com isso o clássico princípio da separação dos poderes e o princípio básico da legalidade. Entretanto, dado o caráter sintético de nosso artigo, esse debate será adiado para outro momento. O que se buscou, em breves linhas, foi a abordagem e delimitação do que se tem convencionado chamar de deslegalização - e isso foi cumprido.



Referências bibliográficas
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

___________________________________

¹Apenas para citar um exemplo: o art. 186 da Lei nº 8.112/90 prevê que a cegueira posterior ao ingresso no serviço público é motivo para declaração de invalidez permanente. Em pleno século XXI já não se pode mais afirmar que o indivíduo portador de deficiência visual esteja incapacitado para o exercício de função pública. Até porque é permitido o ingresso, em determinados cargos, de pessoas portadoras dessa limitação, havendo, inclusive, reserva de vagas em concursos públicos em tais casos. Perceba-se, com isso, que a norma se encontra anacrônica.


NASCIMENTO, Elyesley Silva do. Curso de Direito Administrativo. Niterói, RJ: Impetus, 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.




Nenhum comentário:

Postar um comentário